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24 de fevereiro de 2013

vingança

Vou até a cozinha e encaro J., sem camisa, procurando o que comer na geladeira.

-Vou sair.

Ele se volta imediatamente, me encara com os olhos arregalados.

-Vai pra farra, é?

-Vou.

Dou um sorrisinho mal, indiferente, sustento o olhar com muita calma. Uma frieza admirável, principalmente para mim.

-Você não volta pra casa?
-Não.
-Você disse que iria à feira com a gente amanhã!

Não respondo. Dou um sorriro cínico, tão cínico quanto sua indignação. Ambos sinceros, profundos, pungentes: o meu sorriso, sua indignação.Estou parada à sua frente, ao lado da geladeira, os lábios pintados, os olhos pintados, um vestido azul. Virão me buscar. Ele prepara uma maçã descascada para sua mulher grávida e doente, fraca, afundada na cama do quarto que é meu. Eu observo em silêncio.

-Onde é que você vai?
-Uma festa.

Então, com um olhar de profundo cinismo (é claro, não existe um paradoxo entre profundidade e cinismo na linhagem que me precede, algo muito judaico), ele diz, na minha cara:

-Bandida!

Eu solto um riso divertido, cruel, frio, vingativo.

23 de fevereiro de 2013

tranças

Vesti a camisola de algodão cor-de-pele, reta, comprida, com um desenho de flor no peito esquerdo e, inexplicavelmente, me senti a mais moça das moças. Tinha um ar de internato feminino do começo do século passado. Soltei os cabelos e fui ainda tomar chá, sem sono.

Bem me lembro quando a mamãe ganhou tal camisola de uma ex, então atual, namorada de L., filha de árabes comerciantes de lingerie. Ela agradeceu, educadamente, e depois veio me dizer: ela me deu uma camisola de velha. Isso pegou fundo, ela estava fazendo cinquenta e poucos anos.

Sinto-me a mais jovial das criaturas vestindo a camisola. Umas horas antes e estava fazendo tranças nos cabelos das minhas primas pequenas, que se amontoavam à minha volta, na tentativa de entender minha habilidade manual para o penteado... ah, só fui adquiri-la depois das tranças terem perdido aquele encanto que despertam as coisas bonitas que sabem fazer os adultos. O jeito de se embelezar das mulheres... Trancei eu mesma, pela primeira vez, meus cabelos logo depois de ter terminado A Montanha Mágica, num café, em um dia chuvoso. Fechei o livro e, instintivamente, trancei os cabelos. As meninas foram desfilar na sala, de tranças. O rapaz de oito anos não desgrudava os olhos da TV, depois veio sentar no meu colo, contando da viagem para a Disney. Quando passei os braços em volta dele, ele recuou, com uma careta.

A camisola quase não marca o corpo, toca-o com maciez. Moça, moça, uma moça cheia de problemas e expectativas de moça... ansiosa, insone, com taquicardia e um sorriso (um sorriso mau, indiscutivelmente) nos cantos da boca.

8 de abril de 2012

silêncio, por favor

Papai, debruçado sobre si mesmo no sofá, interessadíssimo, lia Meditações. Eu andava de um lado para o outro, atrás de qualquer coisa que me desse qualquer coisa para pensar em qualquer coisa. Papai não se mexia. A gata, para minha decepção, dormia, não estava afim de carinhos ou conversas com sua velha dona. Deu vontade de chorar. Olhei pela janela e vi o quintal, meus olhos marejaram. Nunca mais encontrarei paz alguma, pensei, se nem aqui, no silêncio dominical da casa onde nasci, a encontro. É a maturidade, resolvi.

18 de dezembro de 2011

ar

Eu e minha mãe comíamos figos depois do almoço. Era domingo, fim de ano, e ela ia sair para fazer mais compras, mas aceitara comer uns figos após os outros membros da casa se terem retirado da mesa. Ela falava, falava... e então parou um pouco. Eu estava concentrada abrindo um figo e notei a pausa, mas não a olhei.

Ela disse:

-Estou preocupada, a sua respiração anda ruidosa ultimamente.
-De novo com isso... Já te disse que minha respiração é suave como a de um gato.
-Não... ela anda bem ruidosa. Acho que os canais que levam ar pelo seu nariz são pequenininhos e apertados.

Levantei a cabeça um instante para olhá-la. "É isso, é isso!", pensava.

6 de julho de 2011

os vidrinhos de perfume

Sabe, hoje a tarde resolvi mexer no armário da casa dos meus pais onde guardo meus perfumes antigos, alguns cremes e uns acessórios de cabelo, todos impecavelmente sem mofo pelos cuidados de Z. Estava um frio absurdo, como tem estado esses tempos (estranho, na minha cabeça, o inverno era uma oscilação entre dias muito frios e dias quentes, mas talvez isso se deva ao fato da escola onde passei meu ensino médio se localizar entre rodovias e avenidas altamente movimentadas que exalam gás carbônico e podem facilmente esquentar os dias menos frios do inverno). Tocava Elis Regina, precisamente aquela música, cujo nome não me lembro, mas que sempre me emociona muito na parte em que ela canta: "Mais uma vez, mais de uma vez, quase que fui feliz...". Eu andava muito emotiva e T.W. me dizia que eu devia tentar conciliar o fardo de ser uma mulher com as coisas boas da minha infância, sem essa minha tão característica rigidez afetiva. Então, pensando em lhe contar depois que o havia feito, fui abrindo um por um os vidrinhos de perfume.

Não vou entrar em pormenores, pois não é possível narrar a sensação nostálgica produzida por um cheiro, que é quase como, por um segundo, voltar a ver o mundo como se via antes, ter os pensamentos que se tinha antes e ter a certeza de que no momento seguinte ainda se terá doze anos. Mas é uma sensação absolutamente fulgaz, insustentável. Em dois seguntos, volta aquela visão anacrônica e nostálgica do passado e não se pode fazer muito mais do que ficar lembrando... Mas pensando que cheguei a abrir uns seis frascos de perfume, acho que fiz uma boa quantidade de idas e vindas do espírito nesta manhã...

20 de abril de 2011

na analise

Hum. Engracado. E como se eu ainda quisesse que todos os dias fossem sexta-feira. Quando eu tinha uns 3 anos e passava o dia todo em casa com a baba observando a movimentacao das pessoas que saiam para a vida, para o mundo alem do portao, pra rua, pro desconhecido, a rotina tinha entao um grande peso pra mim. Pequenas mudancas, detalhes sutis, era tudo o que eu tinha a que me apegar naquela epoca. Entao, como eu ia dizendo, as sextas-feiras minha mae chegava mais cedo do trabalho, num horario em que meu irmao ja estava na escola e eu podia brincar de filha unica daquela mulher fugaz que era, por algumas horas, minha. E justamente na sexta, ela trazia algumas tranqueiras para casa, uns doces, salgadinhos, balas. E ocorre-me uma cena. Lembro-me de, em uma dessas sexta-feiras, correr ate o colo de minha mae, que estava ocupada lendo ou falando com a baba ou no telefone, pegar uma bala e ir comer no quintal, enquanto corria de um lado pro outro. Voltava, pegava outra bala no colo da mamae, ia pro quintal chupa-la, voltava, pegava outra bala... Que bonito... Preciso registrar essas lembrancas, T.W. E eu continuo esperando essas sextas-feiras. Esperando, esperando... e onde estao as balas T.W.?

29 de maio de 2010

visita

Bela tarde, a cuia cheia de mate, a gata no colo. Quando o sol torna-se insuficientemente luminoso, acendo a luz da cozinha, a única luz acesa da casa, que escurece progressivamente. A única pessoa que está lendo, a única com o laptop ligado e dois livros abertos sobre a mesa. Fim de tarde de sábado, visita à família. Uma paz insustentável pairando pelo ar.

8 de fevereiro de 2010

preocupações

-Ela tem comido muito mal, disse que hoje no bandejão teve linguiça, e como ela não come porco, comeu arroz com farofa e tomate...
-Vai ficar doente, minha filha!

-E, imagine só, chegou em casa e fez quiabo... Isso foi só o que ela jantou.
-Ela tem realmente comido muito quiabo, esses dias saiu de casa no meio da tarde, no sol, para comprar uns na quitanda, comprou e comeu... E eram 5 da tarde!

-Você está querendo emagrecer?
-Está deprimida? Me parece...

-Está arrependida de ter ficado?
-Ela deve estar cansada... Pegou duas horas de trânsito hoje.

-Calma, filha...
-Por que as olheiras? Está nervosa? Não gostou do trote?

-Coma na padaria amanhã.
-Prometo que amanhã jantamos todos juntos.

7 de fevereiro de 2010

falsos estabanados

Meu irmão L. sempre foi de falar alto, fazer gestos expansivos, derrubar coisas, trombar no vão da porta, derrubar vinho na hora de servir, dar gargalhadas constrangedoras, cuspir falando e outras coisas que as pessoas exageradas e distraídas fazem por aí. Mas uma coisa me impressiona há dois anos e meio.

Sempre imaginara que esse tipo de gente era um caso perdido. Pra mim, era óbvio que eles não gostavam de ser assim, mas tinham esse azar, fosse pela genética, fosse pela bagagem inconsciente ou pelas forças do mal que agiam sobre eles. Mas meu irmão L. me mostrou que não: ser estabanado é um estado de espírito absolutamente consciente.

Pois é. L. sabe perfeitamente dizer em delicado e bom tom, quando atende o telefone:

-Oi amor. Você tá bem? (etc etc) Tchau, amor, também te amo, amor, até amanhã, amor, tô com saudade, um beijo, boa noite, amor.

Fala baixinho, é incrível. Minha mãe, em especial, fica abismada. Mal ele desliga o telefone, bate a mão em alguma estatueta e a faz em mil pedaços, dá uma gargalhada barulhenta e sai trombando em tudo o que encontra no caminho.

Mas que controle! Que genialidade!

2 de fevereiro de 2010

UFRB

Saindo do quarto, onde eu me enclausurara na leitura de "Os demônios", com o intuito de pegar uma caixa de lenços na estante do corredor, ouvi a voz de meu irmão no andar de baixo, entrecortada pelas vozes de meus pais e as provenientes da televisão. Animada pela presença sempre polêmica de L., com quem eu conversara pela manhã e não vira mais o resto do dia, respirei fundo, desci as escadas com ar grave, parei no quinto degrau, à vista dos três, e exclamei:

-Meu irmão! Esses dois não me deixaram estudar cinema da Federal do Recôncavo da Bahia!

L. abriu um sorriso que eu não sabia dizer se era de entusiasmo ou deboche e disse em tom igualmente trágico:

-Que absurdo! Eu deixaria minha filha estudar cinema no recôncavo da Bahia!

Meus pais olhavam para a televisão, buscando ignorar o nosso diálogo. Na tela, algum filme falado em francês. Ainda indiferente, sem olhar para nós, meu pai disse, friamente:

-Ela iria se formar e fazer propaganda de sabonete.

-Iria sim, no começo, para se sustentar... Faz parte! - defendeu-me L.

Ainda do alto da escada, eu acrescentei, na forma de discurso:

-Eis aí dois preconceitos dessa geração: a impossibilidade de viver como cineasta e a idéia de que nada se tem a ganhar com a vida acadêmica no Recôncavo da Bahia.

Meu pai olhou para mim, inabalável, e disse:

-Eu deixaria você estudar cinema na ECA, na PUC, na FAAP, e deixaria também você fazer filosofia no Recôncavo da Bahia porque você já iria sabendo que teria de lavar louça para se sustentar pelo resto da vida e não teria uma desiludão... mas fazer cinema do Recôncavo da Bahia não dá.

L. riu, ainda não sei se de deboche ou entusiasmo, eu fingi um ar indignado e subi, sorrindo pelos dois motivos, sentindo-me limitada pela mediocridade imposta pelos meus pais, que me deixavam apenas escolhas extremas, sem saber que assim estavam eles mesmos sendo pais medíocres... Sem saberem também que a filha é ainda mais medíocre e está com preguiça de insistir em tal idéia.

26 de janeiro de 2010

abacaxi

Meu pai, sujeito frio e de poucas demonstrações, às vezes resolve dar grandes mostras do seu afeto, como foi o caso de hoje, às dez da noite, quando eu cheguei em casa depois de um dia todo vagabundeando por aí e estava na cozinha, tomando minha sopa de cenoura com laranja, ele saiu do computador, foi até mim e disse:

-Beatriz! Vou descascar o abacaxi pra você!

Eu me levantei, receosa e observei-o escolher a faca, pegar uma tábua de vidro e se dedicar a descascar o abacaxi para mim. Foi um trabalho impecável, durou cerca de dez minutos, mas ele tirou todos os espinhos e pontos pretos, fatiou e ainda colocou umas fatias no pratinho de porcelana e entregou-o a mim. Surpresa, comi um pedaço.

-Está maravilhoso.

Ele ficou feliz, jogou as cascas no lixo e disse:

-Aliás, acho que vamos ter que cancelar a viagem ao Peru.

22 de janeiro de 2010

lar paterno

A tranquilidade do lar paterno: acordar tarde, ter opções pro café da manhã, ficar de pernas pro ar a manhã toda, ter almoço pronto pela empregada Z., olhar os horários do cinema, ir embora, voltar à noite, encontrar as pessoas entretidas cada uma em algo diferente, cumprimentá-las, voltar pro quarto, ler, receber batidas na porta, dar alguma satisfação sobre o dia, fechar a porta, ler e voltar a descer depois que todo mundo foi dormir. É delicioso, eis a melhor definição que achei, olho para a gata como uma igual, já que também passo o dia de barriga pra cima, às vezes as pessoas passam e me fazem cafuné e eu lhes retribuo com um olhar agradecido, nada mais, nem me mexo. Que preguiça... No momento, voltando a essa rotina depois de dias me virando porcamente fora de casa, deitada no sofá com a gata enroscada nas pernas, sentindo cheirinho de carne moída com batatas e ouvindo minha avó falar sobre como engordou no fim do ano e suas saias não estão servindo, a vontade de me ver livre daqui, que sempre foi muito forte, me parece completamente incompreensível, mas não vale a pena pensar nisso.

12 de janeiro de 2010

what a wonderful world

Coloquei o novo CD de jazz que havia comprado pelo meu itinerário, abri a porta e gritei pela minha mãe. Ela saiu de seu quarto e veio até o meu, com um olhar desconfiado, pois tratava-se de uma situação excepcional em que ela entrava no meu ambiente como convidada, não como invasora ou coisa do tipo. Postou-se à porta, sem muita coragem de colocar os pés lá dentro.

-Não conhece essa música?

"I see trees of green, red roses too
I see them bloom for me and you
And I think to myself, what a wonderful world..."


-Ah! - ela exclamou - Claro... Adoro essa música.

No meio do quarto, eu comecei a dançar sozinha, de olhos fechados, gesticulando os braços devagar e me movendo de um lado para o outro, às vezes dando um giro, como que levada por um par invisível muito pouco habilidoso. A iluminação era pouca, vinha apenas do abajur, eu não tinha o costume de acender a lâmpada do teto. Minha mãe, apoiada à porta, me assistia dançar com os olhos curiosos.

"I hear babies cry, I watch them grow
They'll learn much more, than I'll never know
And I think to myself, what a wonderful world
Yes, I think to myself, what a wonderful world"


Ficamos nessa cena até que a música acabasse, "como duas criaturas solitárias e incomunicáveis, feitas cada uma por um deus diferente", até que Mingus iniciasse bruscamente um solo de saxofone na faixa 2 do CD e minha mãe virasse as costas para voltar ao seu quarto.

1 de janeiro de 2010

ano novo

Passei o que acredito ser o último ano novo na casa dos meus pais com um vestido indiano vermelho. Escolhi às pressas, enquanto deixei as batatas no fogo. Foi o primeiro ano que minha mãe não teve de se ocupar minimamente da ceia. Fiz um jantar à francesa, com Bouef Bourguignon, batatas à dore, arroz com lentilhas e torta de maçã. Passamos os quatro, não havia visitantes, como acontece às vezes. Servi o jantar às 23, ficamos comendo, tomando vinho. Minha mãe estava em silêncio e tinha uma expressão sombria, talvez pelo fato de não saber disfarçar seu desgosto com o passar do tempo, ou talvez por outra coisa que prefiro não citar aqui. Meu irmão L.C. estava falante e expansivo e posso não me lembrar mais sobre o que conversávamos, mas sei que ele era o mais falante. Eu falei pouco. Meu pai falou quando teve vontade, interrompendo alguém ou deixando um pensamento pela metade quando julgou necessário. Servi o jantar nos pratos de barro que foram da minha avó, belíssimos, uma das poucas lembranças que temos dela aqui, já que meu pai nunca se interessou em brigar por qualquer tipo de herança. Na mesa, alguns castiçais, as luzes todas apagadas. Quando deu meia noite, brindamos, meu pai e meu irmão me beijaram o rosto, minha mãe me deu um abraço rápido, ligaram a televisão para ver os fogos e eu subi e logo peguei no sono, mal havia lido algumas páginas. Estranhamente, tenho dormido muito esses dias, sem qualquer tipo de dificuldade.

Acordei às 11 horas e todos já haviam tomado café da manhã, a casa estava iluminada, todas as janelas abertas. Tomei o que restara do suco de limão e comi um kiwi. Perguntei onde almoçaríamos e meu pai anunciou que iríamos ao Bexiga. Tomei banho, me vesti, nós fomos. Chovia. Na cantina, eu não quis comer massa, queria peixe. Tomamos vinho, minha mãe, que reclamava de dor de cabeça devido ao excesso de vinho da véspera, bebeu a taça dela e metade da de meu irmão. Voltando para casa, me fechei no quarto, acabei o conto de Tchekov que estava lendo e dormi até o fim da tarde.

Desci quando acordei, assisti um filme pela metade, depois minha mãe esquentou o que restara do jantar de ano novo, eu comi só salada. Lembro-me de ter ouvido algo sobre democracia, direito romano, inquisição, opinei pouco. A fuvest se aproxima, era o que eles me diziam. Pois é, se aproxima...

Ano novo e aniversário me são dois pesares. Minha terapeuta diz que eu não gosto de ter evidências de que o tempo passa. Talvez ela tenha razão. Pensem comigo: se o passar do tempo é inevitável, para que exatamente servem esses tipos de comemorações? O ano invariavelmente passa, não há o que festejar, muito pelo contrário. Muitíssimo pelo contrário.

25 de dezembro de 2009

natal

Fim de tarde. Em casa, meu irmão e a namorada na sala, meu pai dormindo no quarto, eu com o laptop na cozinha. Pedem-me para recomendar um filme. Eu recomendo Kikka, do Almodovar, dos meus filmes preferidos, que eu adquiri recentemente, maravilhoso, engraçado, genial. Ok, eles vão assistir Kikka.

Alguns minutos depois, ouço a voz do meu irmão:

-Bia, mas que merda de filme é esse que você recomendou pra gente?

Ouço gemidos, que provavelmente vinham do filme enquanto ele falava isso. Sim, o filme é consideravelmente pornográfico, mas tem toda uma trama inteligente, o fato é que eles ficam tensos pelo sexo explícito e não apreciam a beleza de tudo aquilo. Por que é que sexo incomoda tanta gente?

Algum tempo depois, passo pela sala para pegar o pendrive sobre a mesa, eles assistem o filme, ela com um olhar entediado, ele com uma expressão indignada.

-Não estão gostando mesmo? - pergunto, nem sei exatamente por que.

-Não - ela diz, sem desviar os olhos da tela, em que aparece no momento uma moça nua muito branca.

-Horrível! Horrível! Pornografia sem sentido, filme sem história, pesado, argh, por que você recomendou isso?? - meu irmão me acusa, olhando fixamente para mim, com as sombrancelhas franzidas, mas o que ele quer mesmo dizer é "como você consegue gostar de um filme tão pornográfico e não se sente infinitamente incomodada como eu? Por que você não se torna um pouco menos vulgar? Como você se atreve a encarar a pornografia sem constrangimento? Bia... por acaso você não é virgem???"

-Desculpe - disse eu, diante de todas as acusações de meu irmão, explícitas ou não.

24 de dezembro de 2009

véspera de natal

Há poucas coisas tão deliciosamente relaxantes quanto descascar e picar coisas na cozinha quando não se tem pressa.

Hoje, véspera de natal, chegando de um almoço em família paterna, enquanto as pessoas foram cochilar para estarem dispostas durante toda a noite da ceia, eu, que ainda não desenvolvi muito bem a prática de dormir, me ocupei em descascar e picar tomates e pepinos para o tabule.

Fiquei ali, em silêncio, à luz do fim da tarde que entrava pela janela da cozinha, solitária, me ocupando dessa tarefa, enquanto pensava. Já não posso me lembrar todos pensamentos que, por associação livre, vieram à minha mente, mas sei que acabaram por dar na mensagem religiosa que a noite me aguardava, recitada provavelmente por minha avó, ou minha tia L., enquanto todos estão comovidos e eu... me ocupo em cuidar das crianças na cozinha, recolher alguns copos, ir servindo a sobremesa ou coisa assim.

É sempre a mesma coisa: reclamam que o natal virou festa e perdeu o sentido religioso, pois nós só festejamos aquele dia porque cristo nasceu para nos redimir, etc. Discordo completamente. Adoro o natal, como adoro outras comemorações cristãs e judaicas, em que faço pratos típicos, estudo a história daquela data e acabo por convencer todo mundo a comemorar, ignorando os atributos metafísicos a ela dado.

Minha mãe hoje estava comentando que deveríamos procurar alguma poesia relacionada ao natal para lermos hoje à noite e eu me recusei firmemente.

-Não acredito em cristo.

-Não??

Minha mãe, apesar de saber do meu ceticismo, sempre se impressiona quando se defronta com ele.

-Pois deveria acreditar!

Mas mesmo assim, natal é formidável. A família de minha mãe se reúne, além dos agregados, come-se e bebe-se maravilhosamente, distribuem-se presentes e abraços, aproveitamos para rever os parentes que moram longe e depois dessa fartura toda na ceia... no dia seguinte todo mundo ainda se reúne para o almoço! É um excesso, fato, mas é delicioso, isso é!

Então, apesar do meu sangue judeu, minha orientação comunista e meu ceticismo exacerbado, ficam aqui os meus votos de feliz natal para os meus parcos leitores!

Enfim, parece que o espírito natalino me pegou de jeito esse ano.

21 de dezembro de 2009

tarde quente

Quando cheguei em casa hoje, já havia internet de novo, depois de três dias. Fazia muito sol, eu tinha acabado de fazer uma prova de vestibular, depois tomara sorvete com meu irmão L. Passar um tempo L. é sempre interessante.

-Você ficou sabendo que a mãe de D. vem passar o natal com a gente?

Fiz que sim, com um olhar completamente perdido no cardápio da sorveteria.

-Ah sei lá, acho chato - comentou ele.

-Indiferente.

-Acho que eu não sou um ser tão social quanto você.

Levantei o olhar, pensei um pouco e disse:

-Pelo contrário, você demonstra se preocupar muito mais com quem está à sua volta do que eu.

-Talvez - ele disse, mas sabia que não ia desistir tão rápido - Mas estou dizendo no sentido de ter maior facilidade em se relacionar.

-Hum... Quero uma bola de pistache.

Ele fez uma careta, disse que eu sou sempre grossa e chata com ele e foi ao balcão fazer o pedido.