Meus dias em Paris começavam sempre turbulentos. Quando dava por mim, estava na rua, de manhã cedo, em meio a parisienses apressados, onde eu não tinha ainda de dividir espaço com demais turistas em férias, pois àquela hora, estes ainda ocupavam-se em descansar.
O fato é que M.C. me acordava às 7h45min todos os dias, pois eu dormia no cômodo denominado por ela consultório. Era um ambiente espaçoso, infinitamente maior e mais emperiquitado do que o consultório da minha analista no Brasil, repleto de estatuetas, quadros e tapetes de todos os lugares do mundo, especialmente do Marrocos, onde M.C. estava montando sua casa de férias.
Eu adoraria poder estar ocupando um imenso e privado quarto de hópedes, onde gozaria do privilégio de acordar a hora que quisesse. Em um deles se encontrava a irmã marroquina do marido marroquino de M.C. e o esposo desta, igualmente marroquino. Com ela (não consigo me lembrar o nome de nenhum deles), que só falava francês, inglês e árabe, eu me comunicava em inglês, com seu marido, eu simplesmente não me comunicava pelo fato dele só falar árabe. Já com o marido de M.C., eu falava um português pausado, que ele estava esforçando-se para aprender, provavelmente por pressão de M.C., mas depois de certo tempo, com o fim da minha paciência limitada devido à quantidade de idéias concomitantes que eu desejava expressar, acabava por falar em inglês.
No outro imenso quarto de hóspedes, estava S., a filha de M.C., com seu marido J. francês, que falava um português afrancesado e a filhinha R. de 2 anos, já bilíngüe, porém com limitações expressivas em ambas as línguas, como a dificuldade em falar proparoxítonas em português (pessêgo, musíca). Em outro momento pretendo tratar deles com a devida atenção.
M.C. me tirava da cama e já passava a arrumá-la, transformando-a em divã para o paciente que chegaria em 15 minutos. Eu me desvencilhava das cobertas com pesar e frio, pois eles mantinham a temperatura do aquecedor muito baixa, de modo que eu tinha de andar consideravelmente empacotada lá dentro. M.C. me dava dois beijinhos de bom dia, e depois de arrumar o necessário, no que eu ajudava sonolentamente, ia para a cozinha tomar um cafezinho comigo e me dar as orientações necessárias para o dia.
Na cozinha de azulejos coloridos, repleta de porcelanas, costumava encontrar pela manhã S., seu marido e a filha. Confortava-me encontrá-los igualmente sonolentos e não com o ânimo matutino de M.C. Esta perguntava qual a cor do sache de café nespresso eu gostaria de tomar e eu sempre dizia que queria qualquer um que fosse forte (ainda não tivera tempo de me acostumar a esse luxo, a ponto de decorar a cor certa de sache para cada estado de espírito), ela mesma escolhia um e preparava para mim, enquanto eu comia um croissant ou um pain au chocolat.
-Você não pense que ele vai à padaria todos os dias, esse luxo é só porque você está aqui! – disse-me um dia M.C., referindo-se ao marido.
M.C. aproveitava os minutinhos que tínhamos para dizer todos os lugares que eu deveria visitar durante o dia, geralmente uns cinco ou seis. Ela não dava muitas explicações de como chegar lá por três motivos: um, por superestimar a minha sagacidade, dois, por superestimar o conhecimento do resto do mundo quanto a Paris, três, por andar apenas de táxi ou a pé (ah, ela se indignava com a minha preguiça em cruzar a cidade andando, eu, em plena juventude e forma física!).
Depois de deixar as orientações anotadas ou grifadas em algum guia semanal em francês, onde eu não entendia absolutamente nada, mas não chegava a dizer isso para não decepcioná-la, ela trancava-se no consultório e eu só voltava a vê-la geralmente depois das 10 da noite.
Na cozinha com os demais, geralmente falávamos no Brasil. S. queria informações sobre a vida de meu irmão J., a quem ela não via há mais de vinte anos e pareceu realmente triste quando eu contei que ele há pouco tempo passara dois anos e meio em Lion estudando e não a contatara. Eu lhe disse que J. estaria no Brasil quando eu chegasse, e ela ficou de me dar uma carta para lhe entregar, cheguei até mesmo a vê-la na escrivaninha escrevendo algo, enquanto eu acalentava R. e olhava fotos em preto e branco na parede do quarto, mas por fim, não me deu carta alguma.
Minhas malas ficavam num corredor que passava entre o salão principal, o consultório e um banheiro. Escolhia a roupa no maior silêncio possível, pois as casas européias são absurdamente barulhentas, especialmente as antigas como aquela, de modo que o paciente de M.C. poderia ouvir o mais ínfimo ruído da minha parte no cômodo ao lado.
Ia trocar-me no banheiro. Este era dividido em dois. A porta do corredor dava para a parte dele que continha um vaso sanitário e uma pia. Uma porta dentro dele abria para um compartimento com um boxe, outra pia e armários. A porta que se seguia dava para o quarto de hóspedes onde dormiam a cunhada de M.C. com o marido. Demorei a me acostumar com o estilo arquitetônico europeu, que acabei por não achar nada prático.
Eu geralmente saía antes dos demais, pois não tinha muito o que fazer lá dentro, enquanto tinha um itinerário complexo a cumprir pela cidade. Tinha de usar a saída dos fundos, pois a porta da frente era para os pacientes de M.C. Porém, só havia uma chave daquela porta e alguém tinha de ir abrir para mim. A escada de emergência era abandonada, rangia e no primeiro dia, eu não achei o interruptor de luz, de modo que tive de descê-la sob a luz muito fraca da manhã invernal que entrava por uma pequena janela muito alta, enquanto ouvia barulhos não-identificados nos outros andares, além dos rangidos provocados pelos meus próprios passos.
E era assim que, magicamente, eu me via em plena Rue Richallieu, atrapalhando o trânsito dos parisienses apressados, completamente sem direção, tendo apenas o Louvre como referência. Este ficava a duas quadras dali, mas eu custei a decorar como chegar lá (talvez isso lhes dê uma idéia de como andava meu estado de espírito durante este período), de modo que a primeira coisa que fazia ao sair pela porta era tomar uma direção qualquer e perguntar a alguém com aparência agradável para onde ficava o Louvre, em inglês. As respostas variavam, e eu nem sempre entendia muito bem o que eles diziam, dava muitas voltas a procurar o Louvre, para então dar milhares de outras em busca dos meus demais destinos designados por M.C., mas estas voltas eu ainda necessito recordar com melhor precisão, portanto, serão tema de postagens futuras.
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