Na casa da avó, estávamos as duas no quarto. Ela, sentada na cama, embrulhava os presentes de natal; eu, na poltrona reclinável, me entregava ao Primeiro Amor, de Turgueniev.
"Naquele dia eu me sentia tão alegre e orgulhoso, conservava em meu rosto a sensação dos beijos de Zinaída com tamanha nitidez, relembrava cada palavra sua com tal frêmito e êxtase, acalentava tanto a felicidade inesperada que até cheguei a experimentar medo e a perder a vontade de vê-la, a responsável por aquelas sensações. Parecia-me que não poderia exigir mais nada do destino, que agora deveria 'dar uma boa inspirada, pela última vez, e então morrer'"(...)
Fui interrompida pela voz da avó.
-Beatriz, você se lembra da C.?
-Mãe do M.?
-Ela mesma.
Sim, eu me lembrava: A simpática senhora do apartamento do lado que, quando eu contava 11 anos e morava com a avó, tinha planos de me casar com seu filho M., que na época tinha 8 anos, era pálido, baixo e magrelo.
-Lembro sim.
-Ela se trancou no apartamento, não quer mais ver ninguém.
-Hum?
-É. Quando a gente liga, ela manda dizer que não tá, a gente toca a campainha, ouve movimentação lá dentro, mas ninguém atende a porta. Um dia desses eu bati lá porque precisava entregar um negócio, o M. me atendeu, disse que a mãe dele tava no banho, mas eu bem vi que ela tava no corredor, escondida.
-E o marido?
-Ah, ele sempre foi fechadão, mal-humorado, briguento que só... Também, é judeu.
Fiz silêncio. Tinha recordações de uma C. muito alegre, sorridente, um completo contraste com o marido, que, aliás, era o síndico. E agora, de repente, recolheu-se. Fiquei imaginando como isso seria material para um bom romance. Talvez C. tivesse se dado conta de sua inutilidade como dona de casa e estivesse em crise, ou tivesse um admirador que a perseguisse, ou então o marido a tivesse proibido de sair porque encontrara uma carta anônima dedicada à mulher na gaveta do criado mudo, também pode ser que estivesse com uma doença terrível e tivesse se isolado para pensar, ignorando completamente o social.
-Ela gostava tanto de você - comentou a avó.
-Eu podia tentar ir lá...
-Não adianta... D., que era tão próxima dela, tentou ir lá esses dias, ela não atendeu.
Seria esse o meu futuro? Um casamento sombrio, uma felicidade fingida que desse umas pinceladas alegres na imagem da minha vida conjugal, um filho raquítico, um grande acontecimento (ou não!) e... o isolamento, a depressão, talvez uma morte precoce, suicído ou homicídio por parte do marido cruel ou do filho psicopata... Seriam as relações pura formalidade, algo que cutucasse a liberdade individual aos poucos e que então de repente, fizesse as pessoas explodirem e lhes deixasse a escolha: fugir ou isolar-se...?
Espantei meus devaneios com um suspiro. Calma, Beatriz... Volte sua atenção para o Primeiro Amor por enquanto, que é tudo o que tem em mãos.
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